Com o objectivo de mostrar a relação entre Cinema e Alimentação enquanto fonte histórica e de análise à sociedade, apresento parte da análise ao filme A Festa de Babette que realizei no âmbito do Mestrado em Alimentação – Fontes, Cultura e Sociedade, para a disciplina de Cinema.
Cinema como memória colectiva
Desde o início da História do Cinema, que se reflectiu sobre a imagem como expressão da realidade e da verdade. Segundo Boleslas Matuszewski, que trabalhou com os Irmãos Lumière, o Cinema não dá a História integral, mas o que ele nos fornece é incontestável e de uma verdade absoluta.
Assim, somos levados a atribuir ao Cinema o valor de verdade e ao filme a importância de documento histórico. É possível ao historiador identificar no filme elementos que o ajudam a compreender a sociedade para além das representações operadas pelos grupos dominantes. O filme fala sobre o tempo da sociedade produtora, sobre os valores da época, mas também revela como a sociedade que vê o filme olha para si mesma ou como olha os eventos do passado. O filme permite-nos reflectir sobre os valores que as sociedades transportam.
Cinema e Alimentação
Cinema e Alimentação são conceitos que vivem em uníssono, porque ambos são fruto da acção e cultura humana, com um mesmo propósito – viver sensações. Quer a experiência gastronómica, quer a cinematográfica, resultam em ricas experiências sinestésicas. Então, o que sentir quando ambas as experiências se unem? Oferecem-nos uma experiência ímpar, de cor, movimento, acção, desejo, aprendizagem, conhecimento e «degustação». Ambas são Arte e Cultura. Sobre cultura e alimento, Ernesto Veiga de Oliveira diz-nos que «é desnecessário acentuar a importância do alimento como factor primordial de cultura», visto que da alimentação, nasce a cultura. Ou seja, através da recolha do alimento e da sua preparação, o Homem foi evoluindo, pois foi a «partir dessas actividades, prolongando a função biológica, que surgiu o Homem como ser cultural». São duas realidades indissociáveis.
A Festa de Babette
A Festa de Babette, obra-prima do realizador dinamarquês Gabriel Axel e inspirado no livro de Karen Blixen - conhecida pelo pseudónimo Isak Dinesen, insere-se no rol de filmes que têm como cerne a comida, sendo mesmo considerada por Steve Zimmerman, o filme que deu início ao género dos filmes sobre alimentação. A Festa de Babette realizada em meados da década de oitenta, do século XX, transita em torno da preparação dos alimentos, da figura do cozinheiro ou do acto de sentar-se à mesa. A comida não é entendida apenas pelo seu carácter nutricional, mas fundamentalmente, inserida numa cultura, rodeada de sociabilidades e imbricadas na História. Ou seja, alimentar-se é um acto nutricional, comer é um acto social, pois constitui atitudes, ligadas aos usos, costumes, protocolos, condutas e situações.
Somos confrontados com um dos momentos de maior prazer do ser humano, o da comida. É no banquete de Babette que se revela a vida esquecida das personagens, quer no passado ou nos sonhos esquecidos. É no prazer do gosto, do cheiro dos pratos servidos, que quase sentimos o aroma espalhado pelos espectadores, que se descobre que a vida não é linear, que o quotidiano pode ser interrompido a qualquer momento, e revelar não só as obrigações sociais e religiosas de uma existência, como as surpresas do eu adormecido, dos sonhos do que se pretendeu ser e do que nos tornamos.
Estrutura Narrativa (Sequências)
Segundo Robert McKee, A Festa de Babette insere-se na categoria de «filme artístico».
A primeira sequência do filme caracteriza-se pela apresentação das duas irmãs, Philippa e Martina, e pelas suas escolhas, de forma a permaneceram com o pai no serviço religioso da Igreja. Termina quando Achille Pappin regressa a Paris, deixando uma das irmãs por quem se apaixonara, Phillipa. A segunda sequência, inicia-se trinta e cinco anos mais tarde. O pastor já falecera e as duas irmãs envelheceram, contudo os ideais religiosos do pastor continuam vivos. Neste ponto surge Babette como empregada das irmãs, o momento em que a história, efectivamente, começa.
Durante esta sequência vemos a continuidade do trabalho de Babette para as duas irmãs, correspondendo a um tempo real de 14 anos. Ao longo desse tempo, começam a surgir queixas dos membros da Igreja. O primeiro caos acontece quando Babette recebe uma carta de França a contar-lhe que ganhara 10 mil francos na Lotaria. Nesse momento, ao ver que Babette ficara rica, as duas irmãs sentiram medo da sua partida para França.
Babette oferece-se para confeccionar e preparar um jantar francês para os habitantes da aldeia em comemoração do centésimo aniversário do Pastor. Aquando dos preparativos de Babette para a refeição, um novo caos ocorre – o pesadelo de Martina. A irmã sonha que Babette possui poderes demoníacos e que o jantar será o resultado de bruxaria. Este momento vai definir a quarta sequência que apresenta a Festa, propriamente dita e que dá título ao filme.
A última sequência do filme abre com o temor dos paroquianos perante a comida confeccionada por Babette. Estes combinaram não tecer qualquer comentário face à comida durante o jantar. Contudo, ao longo da degustação eles são atraídos pelo prazer que os alimentos proporcionam.
Consequência desse sentimento é a harmonia e a união dos laços entre Irmãos, anteriormente quebradas. Além disso, a quarta sequência termina com Babette a contar às irmãs que gastara todo o seu prémio na preparação do Jantar, que ela fora uma chef famosa em Paris e que permaneceria com as irmãs em vez de voltar a França.Com esta notícia, os corações de Martina e Phillipa acalmaram-se, terminando assim a história.
Fotografia e Música
As cenas fílmicas são de um profundo poder contemplativo para o qual a qualidade da Fotografia e da Música concorrem. O mundo das irmãs é pintado com uma paleta de tons cinzentos, pretos e branco. Elas vivem num mundo frio e prudente num amontoado de casas pequenas à beira-mar. A ferocidade do clima está sempre presente, com o céu carregado de nuvens, com a tempestade, com o vento a soprar. Essa austeridade é intensamente retratada na cena da preparação dos alimentos, onde as irmãs ensinam Babette, recém-chegada, a confeccionar a refeição tradicional, de peixe seco que deve ser demolhado e do pão de cerveja que se assemelha a umas papas.
Em contraste, as cenas posteriores do filme, em que Babette, tendo gasto o dinheiro da lotaria nos ingredientes para a refeição, prepara e serve a festa, são de uma incrível sensualidade com cor e textura. O linho da toalha de mesa, decorada com castiçais de prata que reluzem. A comida em si é simplesmente uma maravilha – a codorniz dentro da cesta de massa-folhada, um pedaço de tartaruga bóia na sopa fumegante, a delicadeza da pastelaria, um bolo num ninho de frutas confitadas é regado com licor. No final, há uvas e figos suculentos e maduros que rebentam com a dentada.
Gabriel Axel conseguiu criar visualmente uma refeição preparada por uma artista. Durante todo o filme somos acompanhados pelo silêncio, pontuado apenas pelo som natural das ondas do mar, do vento, do abrir e fechar das portas, do toque do papel, do tilintar das louças, dos sinos da Igreja, do chá, do vinho a escorrer para as chávenas e copos, dos passos.
A música é introduzida de duas maneiras especiais: no canto dos hinos da Igreja que nos dão conhecimento dos anseios e crenças profundamente arraigadas da comunidade e no uso de um solo de piano e de um dedilhar de violino que entra em algumas cenas significativas como um sublinhado trémulo e comovente. Assim, acabamos por ser convidados a entrar na realidade dos próprios personagens, em que a nossa respiração se confunde com a deles.
O Banquete do ponto de vista filosófico e social
O banquete representava tudo aquilo contra o qual as irmãs Philippa e Martina haviam lutado durante a vida em nome do pai, ou seja, o prazer, a comensalidade, a sensualidade. O que Philippa e Martina mal sabiam é que a «orgia», no sentido atribuído por Maffesoli, constitui uma via alternativa à religião, à fusão cosmológica com o sagrado.
Para Nei Lima, A Festa de Babette, representa uma outra via para atingir a pureza, o sagrado e/ou o divino: «À mesa, os dois mundos, o da sobriedade e o da sensualidade. Ou melhor, três: entre os dois, a gratidão, em forma de delícias sensuais que Babette oferecia às irmãs e aos seus convidados. O que Babette parecia querer dizer é que não é preciso recusar os prazeres corporais para que o espírito prossiga justo e correcto. Que esses prazeres podem ir além da simples dissipação dos sentidos para significar gratidão e generosidade. É inicialmente esse gesto (dito na forma de um banquete fausto) o que provoca o malogro das promessas que fizeram de se manterem puros, negando qualquer prazer que viesse do campo discursivo da comida».
A partir do entendimento do «banquete» como um ritual é que atingimos o «Banquete» como mito no imaginário filosófico e religioso ocidental. Tal como o Banquete de Platão, a função do amor é a de criar a virtude nos homens por meio da beleza. A declaração de Babette, no final do filme, logo após as irmãs questionarem-na quanto ao gasto de todo o prémio da lotaria confirma este juízo. Afinal, Babette não se encontrava mais pobre ou mais rica do que antes, na verdade, havia resgatado parte do amor perdido anos atrás com a arte que Deus lhe dera de fazer magia através da arte gastronómica. Por outras palavras, o banquete é uma declaração estética de amor à vida, à sociabilidade, à sensualidade, à comensalidade, enfim, à comunhão dos homens.
O Banquete como Fábula da Cozinha Francesa
A apresentação do jantar é revelada em cada pormenor. Babette prepara os animais, coloca a mesa, cozinha, peneira, salteia, faz bolos, emprata, corta os queijos, decora.
O serviço de mesa é à francesa, onde os pratos são servidos um de cada vez. De início, a sopa de tartaruga, acompanhada por um Amontillado, vinho Jerez de cor âmbar, seco e fortificado, de origem espanhola. As entradas foram concluídas com o Blinis Demidoff, acompanhado de um Champagne Veuve Cliquot de 1860. Dos pratos principais, o destaque vai para o Cailles en sarcophage, ou seja, codornizes assadas no forno, em caixa de massa folhada (vol-au-vent).
Depois dos pratos principais, os queijos; em seguida, as sobremesas doces (kuglehopf) e as frutas (ananás, uvas, figos, papaias). Após o café, um Cognac superior, un fine champagne. A prima donna do jantar foi o Champagne, mas um vinho tinto servido também mereceu referência especial: um Clos Vougeot 1846. Este vinho é um Bourgogne, originário das vinhas da Côte de Nuits, bastante apreciado na época, e marcava presença nas cartas de vinhos de restaurantes famosos em Paris.
Conclusão
Existem três conceitos muito importantes: a arte, os artistas e a sociedade. Encontramos a arte da música e da gastronomia; os artistas em Babette, Pappin e Philippa; a sociedade no General e no Grupo de discípulos. O General, marca da modernidade e de abertura ao mundo, serve como ponte na sociabilização do gosto e na abertura aos sabores e experiências ao grupo de discípulos.
Um dos motivos centrais da narrativa foca a discussão sobre a arte na sua relação com o criador e o público. A Gastronomia apresenta-se como arte interactiva, não só enquanto combinação de sentidos (gosto, olfacto, audição, vista e tacto), mas porque nela os actos de criar, fazer e fruir estão intimamente relacionados.
O Jantar de Babette permitiu-lhe oferecer aos outros o que de melhor ela tinha para dar e como resultado surpreendente conseguiu oferecer a Felicidade e a Renovação.
Além da moralidade presente ao longo do filme, onde a comida surge como metáfora para a apresentar, podemos sugerir que a escritora do romance que deu origem ao filme, Karen Blixen, através de um erro histórico procurou chamar a atenção para as poucas mulheres ou, mesmo inexistentes, na Chefia das cozinhas no século XIX ou mesmo nos nossos contemporâneos. Na época temporal da narrativa, o Chef do Café Anglais era Adolphe Dugléré e este não permitia de forma alguma a permanência de mulheres na sua Cozinha.
Para finalizar, fica uma das frases finais de Babette - «Um grande grito sai da alma do artista, deêm-me a oportunidade de fazer o meu melhor».
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FONTE
Filme A Festa de Babette de Gabriel Axel, 1987
BIBLIOGRAFIA
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