Alimentação na Pintura ao longo da História da Arte
A representação das presas : mamutes, bisontes, cavalos e outros animais, relacionou-se com a transitoriedade da vida nómada, e com a função propiciatória para a caça. Assim, no interior das grutas ou nas superfícies rochosas ao ar livre, esta arte é, antes de mais, uma tomada de posse e surge, segundo René Huyghe, como um meio concedido ao homem para se relacionar com o mundo exterior, bem como atenuar a diferença de natureza que o separa e o temor que experimenta perante ele.
As representações naturalistas dos animais reflectiam, assim, as preocupações de subsistência, pois eram o principal alimento.
A História da Arte nasce, pois, para operar magia com os valores simbólicos da vida quotidiana, surgindo a alimentação e o acto de alimentar-se, como um dos temas principais das primeiras representações pictóricas.
Apesar das transformações civilizacionais registadas desde a Pré-História aos nossos dias, a par da evolução cognitiva e cultural do homem, a concepção característica da Pré-História, do papel e do significado da arte, vai perpetuar-se e desenvolver-se.
A imagem apresenta-se como um verdadeiro duplicado do seu original e dota-o com os mesmos poderes que aquele. Vai ser na arte do Antigo Egipto que se vai afirmar esta noção do duplicado mágico equivalente ao seu modelo. Nas pinturas murais dos túmulos, as cenas da vida quotidiana asseguram ao morto o seu uso eterno. Dessa forma, a arte mágica e a arte narrativa conjugam-se perfeitamente.
As cenas com representações de oferendas, de caça a aves selvagens e de pesca, passatempo dos reis e dos senhores, as representações de jardins e de animais domésticos familiares na quinta, as representações das actividades quotidianas como o joeiramento de grão na eira, oferecem-nos uma noção da alimentação no Antigo Egipto.
Na Civilização Clássica Greco-Romana, a arte, concebida essencial e conscientemente tendo em vista o «deleite» do espectador, procurou suscitá-lo quer através do realismo, quer da harmonia. A arte Clássica fundada na verdade exacta, revela-nos o quotidiano alimentar através da pintura que decorava os objectos de cerâmica, os frescos, bem como os desenhos nos mosaicos. As naturezas-mortas e as cenas do quotidiano são pequenas obras-primas, com as formas a revelarem um realismo exemplar, as cores e os brilhos, denotando grande atenção e singularidade pelo detalhe.
Com o advento do Cristianismo, a pintura foi um dos meios encontrados para educar os membros da Igreja que não sabiam ler nem escrever. O Papa Gregório Magno, que viveu em finais do século VI lembrou que a «pintura pode fazer pelos analfabetos o que a escrita faz pelos que sabem ler». Assim, os mosaicos e os frescos funcionavam como uma forma de representar, de maneira clara e simples, as passagens bíblicas, omitindo tudo o que pudesse desviar a atenção da finalidade principal. A maioria das obras apresenta elementos místicos como anjos, divindades ou mesmo parábolas bíblicas. Podemos observar nos mosaicos representações animais como o peixe, que possui um papel importante na simbologia cristã.
No final da Idade Média, seguindo o modelo litúrgico dos breviários utilizados pelos padres desenvolveu-se durante o século XIV, um livro de devoções privadas – os «Livros de Horas». Estes fornecem-nos um conjunto de imagens surpreendentes, revelando até que ponto, nesta época, os artistas se sentiam atraídos pelo mundo real e a exactidão com que o representavam.
As numerosas imagens de refeições presentes nos «Livros de Horas» revelam, claramente, os hábitos e os rituais à mesa, nomeadamente aqueles que decorriam nos círculos aristocratas.
Com a dissipação da época medieval, emergiu um novo espírito alicerçado no renascimento do Humanismo e do Classicismo Antigo. As novas técnicas e uma nova perspectiva do mundo conduziram a uma nova estética, tão clássica como cristã. Emerge a representação de temas do quotidiano, nos quais a alimentação surge como assunto fundamenta, contudo o carácter fortemente religioso permanece.
Hieronymus Bosch (c. 1450-1516) tratou em inúmeras obras o pecado da gula, perante o qual a Igreja lutou firmemente durante a Idade Média. Flores, animais, frutos e legumes são elementos inseparáveis da conotação bíblica. Por exemplo, as naturezas-mortas com uvas, maçãs ou peras representam o sangue de Cristo e o seu amor à Igreja. O pão e o vinho da Última Ceia, ou a lagosta associada às uvas, simbolizam a ressurreição de Cristo.
Pieter Bruegel, o Velho (1525-1569), pintor activo em Antuérpia e Bruxelas, próximo dos humanistas, ocupou-se sobretudo do quotidiano do povo, das suas actividades e dos seus costumes, dos banquetes, numa dinâmica diária.
Cenas de mercados, talhos, padarias ou, ainda, insumos abundantes para a época, como pães, vinho, ovos e leite, compõem um retrato perfeito da experiência quotidiana.
Os alimentos conhecem um verdadeiro sucesso a partir do século XVII, contudo a alimentação não constitui ainda o tema principal das obras, mas apresenta-se como elemento fulcral para a totalidade do tema. A alimentação é o acompanhamento perfeito para as cenas quotidianas, sendo a sua presença, envolta num profundo simbolismo.
A pintura traduz mais do que uma atmosfera, uma emoção, sendo que as naturezas-mortas não estão limitadas apenas às reproduções de alguns pratos sobre a mesa. As naturezas-mortas, tal como na arte Clássica, transformam-se em verdadeiras composições através das pinceladas de Caravaggio, Zurbarán, Velázquez, ou Cotán.
Josefa de Óbidos (1630-1684), pintora excepcional do barroco português, pintou inúmeras naturezas-mortas, valorizando o doce. É impossível desligarmos a representação dos alimentos do simbolismo religioso presente na sua pintura.
Durante o século XVIII, Jean-Siméon Chardin pintou, igualmente, numerosas naturezas-mortas, valorizando as sensações, de forma a recuperar toda a dimensão sensual dos alimentos, as suas obras são verdadeiramente degustadas, pelos olhos.
Com a Revolução Industrial nasceu um dos movimentos artísticos que mais recorreu à alimentação como temática, o Impressionismo. O Impressionismo teve como principais representantes Claude Monet e Pierre Auguste Renoir que transportaram para as suas telas cenas ao ar livre, como piqueniques, restaurantes e cafés, em telas caracterizadas por pinceladas vibrantes e coloridas. Paul Cézanne modernizou com o seu pincel as naturezas-mortas ao capturar os frutos com cores vigorosas, oferecendo, pois, à arte, um novo sentido de expressividade.
Omnipresente na História da Arte, a temática da alimentação foi desenvolvendo-se ao longo de movimentos, tendências e escolas artísticas. Cada época interpretou de uma forma diferente, segundo o contexto sócio-cultural da época. No Modernismo, o tema da alimentação foi influenciado pelas Grandes Guerras, originando telas vanguardistas como Picasso. Com a Arte Contemporânea nascem diversas correntes estéticas, como o Pós-Modernismo e a Pop Art, em que os alimentos tornaram-se base de ironia, como nas latas da sopa Campbell de Andy Warhol.
Mais recentemente, a Arte Contemporânea apropriou-se da alimentação para criar obras efémeras, simbolizando tudo o que é perecível.
Na verdade, os artistas contemporâneos procuram reabilitar a representação dos alimentos, enaltecendo a paixão e o prazer que o comer sempre causou no homem.