Sobre o pão que não falta à mesa
O meu interesse sobre História da Gastronomia leva-me a procurar nos documentos antigos testemunhos das épocas passadas…
Um dos mais credíveis é o testemunho de Francisco da Fonseca Henriques (1665-1731), natural de Mirandela e que foi médico de D. João V. Deixou escrita uma vasta obra entre a qual avulta a Ancora Medicinal publicada a primeira vez em 1721 e depois reeditada por quatro vezes. Nela nos deixou exemplarmente descrito, e com espantosa actualidade, o que ele entendia por estilo de vida saudável e quais os modos de o contaminar.
Sobre o pão Francisco da Fonseca Henriques diz-nos…
«E assim como sem Pão toda a mesa ainda que esplêndida, é defeituosa, também sem ele não haverá nutrição sólida, e perfeita.
(…)
O Pão para ser bom, não basta só que seja feito da flor da farinha, se não que há-de ser bem fermentado, bem cozido, leve, esponjoso, amassado com moderado sal, e cozido, de vinte, e quatro horas. Há-de ser bem fermentado: porque o fermento incide, e atenua a pasta víscida da farinha, introduzindo-lhe muitas partes aéreas, (…); ficando o Pão esponjoso, leve, e oculado, como vulgarmente se diz. E sendo mal fermentado o Pão asmo, pesado, e mal cozido, gravando o estômago (…)
Há-de ser bem cozido: porque não sendo assim, oprime o estômago, e coze-se nele com dificuldade, dando de si flatulências e obstruções, como o Pão mal fermentado.
Note-se a preocupação com o sal… ideia tão actual
Há-de amassar-se com módico sal: porque é preciso algum, para que o Pão se não corrompa, e para que a sua substância crassa, e víscida se atenue com ele, e se o sal for muito, fará o dano de secar, não só o Pão, mas o corpo, que dele se nutrir.
Há-de ser mole o Pão, e cozido de vinte e quatro horas: porque depois de duro, e antigo, coze-se mal, grava o estômago, e constipa o ventre. E não se há-de comer logo que sair do forno: porque tem uma lentura com que incha o estômago, e obstrui as entranhas, e se se come quente, com o empireuma, que traz do forno, ofende muito o calor natural, e perturba os espíritos, o que se evita comendo-o frio. »
Mas, o pão não era igual para todos…
«Do pão de centeio é o sustento da maior parte de Portugal, e de Galiza. Chamaram-lhe centeio os Castelhanos, dizendo, que produzia tanto que cada grão de semeadura dava cento. É o centeio frio e seco, e o Pão, que dele se faz é, prezado, glutinoso, e de difícil cozimento. É próprio para homens rústicos, e trabalhadores, que usam dele sem ofensa; o que não sucederia a pessoas de vida sedentária, e ociosa. Não entra este Pão em mesas nobres, para as quais sempre se procura o trigo.
Do milho grosso se faz também Pão, que sustenta quase toda a Província de Entre Douro, e Minho. É frio, e seco como o centeio, coze-se com dificuldade, e é menos nutriente, sendo, que as pessoas, que se criarão com milho, pela familiaridade que tem com a natureza, se nutrem muito bem com ele.
Na falta destes Pães, se faz também Pão de cevada, de que só a pobreza usa, porque nem é Pão de bom gosto, nem de boa nutrição. É a cevada fria, e seca, e tem virtude abstergente, assim no grão, como na casca, ainda que esta é mais abstersiva, e mais seca.
(…)
Assim como da cevada, se faz também Pão de farinha de aveia, mas de menos substância, e nutrição, que todos os outros Pães.»
Fonte
HENRIQUES, Francisco da Fonseca - Ancora Medicinal, para conservar a vida com saude. Lisboa Oriental: Officina Augustiniana, MDCCXXI, Segunda Impressão