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Arte, Cultura e Pastelaria

Arte, Cultura e Pastelaria

O sal na alimentação medieval

Graellsia, 17.06.12

Venda de sal

Tacuinum Sanitatis, Século XV. Conservado na Biblioteca Nacional de Paris, Latin 9333, fol. 60

 

O sal, além de mercadoria indispensável e base de muitas actividades do sector das exportações, era essencial aos padrões de consumo medievais, afirmando-se como substituto das dispendiosas especiarias, tempero de alimentos incomestíveis sem ele, com destaque evidente para o pão, condimento que disfarçava o estado de decomposição de certos mantimentos, conservante destes mesmos alimentos sobretudo nos meios rurais onde as carnes da matança deviam durar longo tempo e, claro, para a salga do pescado.

 

A salga de carne deveria ser prática corrente, mormente utilizada em tempo de guerra. Na Crónica de D. João I, de Fernão Lopes temos indicação que em 1384, os moradores de Lisboa, em iminência do cerco «traziam muitos gados mortos que salgavam em tinas».

 

Os alimentos poderiam ser temperados enquanto se cozinhavam, mas também se poderiam temperar em cru – por exemplo, temperar uma salada com sal, azeite e vinagre ou através de marinadas, estas comprovadas pelo «poeta docentista Airas Peres Vuitorom que comeu em casa do rei, capão, cabrito, e lombo de vinho e de alhos e de sal».

 

O sal era utilizado na produção da manteiga com sal, que por ser um produto de fácil e de rápida deterioração, necessitava de sal na sua preparação não só para promover um sabor mais apelativo mas, principalmente, por necessidade de conservação. Era também utilizado no queijo, como tempero e como conservante, e também na salmoura das azeitonas.

 

O Livro de Cozinha da Infanta D. Maria permite-nos conhecer a importância do sal nas confecções culinárias. Era, frequentemente, utilizado nos manjares de carne, comprovado: na tigelada de perdiz - «Pô-la-ão em cima das brasas a ferver/ temperada com seu sal»; nos pastéis de tutanos - «com os tutanos e os ovos, e temperá-los-ão com sal»; no alfitete - «E dês que for a galinha muito bem cozida e temperada com seu sal»; na receita das morcelas, com a quantidade exacta de sal a utilizar - «tomarão vinte e cinco onças de sal moído»; em outra receita de tutanos - «das espáduas do mais gordo porco que se puder achar, /e cozê-/-lo-ão com sua água e sal (…) e na presa deitarão uma pouca manteiga /e água-de-flor e sua têmpera de sal»; na receita de vaca picada em seco, coloca-se o sal durante a cozedura, juntamente com os outros temperos ou adubos - «E depois que começa de ferver tem-/perada com vinagre e com seu sal, e os adubos/ é cravo e açafrão e pimenta e gengibre»; nos pastéis lepardados que são temperados unicamente com sal – «e não/ há-de levar senão água e sal»; na galinha mourisca, temperada também durante a cozedura - «depois que ferver, temperá-la-ão/ de seu sal». Não encontrarmos a utilização do sal nos manjares de ovos, mas surge, apesar de menos frequente em relação às carnes, nos manjares de leite: no manjar-branco onde existe o cuidado de nos alertar que o sal entra somente na última etapa da confecção - «Tomareis o peito de uma galinha/ preta e pô-lo-eis a cozer sem sal, (…) e deitar-/-lhe-eis sal com que se tempere»; nos pastéis de leite somos informados que estes não levam sal - «Tomarão um tacho e pô-lo-ão ao fo-/go com quantidade de água quanto leve/ um púcaro de meio arrátel, e sem sal.»; na tigelada de leite - «deitarão este/ polme, que será temperado com sal»; na tigelada de leite de Dona Isabel de Vilhena - «E deitar-lhe-ão/ um arrátel de açúcar pisado, e des-/façam-no muito bem com o leite e ovos,/ e lancem-lhe sal que for necessário, e seja cozido para que se desfaça melhor.». Temos referência à salmoura nas conservas, particularmente, na receita da abóbora - «E primeiro que a deitem [a abóbora], lancém na água uma/ mão-cheia de sal (…) E depois coarão esta/ salmoura (…) E depois/ destes três dias provem a abóbora, e, se/ não for ainda fora da salmoura, tor-/nem a trazer na água fria outros três dias».

 

Saleiro em ouro de proveniência francesa do século XIII

The Cloisters Collection, The Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque

 

Podemos depreender da leitura d’O Livro de Cozinha da Infanta D. Maria, que a utilização do sal nas confecções nem sempre obedecia a quantidades
determinadas, a não ser quando estas eram expressas - «vinte e cinco onças de sal moído»; «mão-cheia». Podemos então dizer que nas cozinhas medievais a quantidade de sal utilizada seguiria o bom senso e o gosto da época.

 

Sabemos que o sal tinha presença habitual à mesa devido à profusão de saleiros em ouro, prata e madeira, permitindo-nos pensar que cada comensal podia salgar a comida a seu gosto, mas também, porque o sal detinha um papel complexo perante o simbolismo religioso. Representava a aliança entre Deus e o seu Povo. Por conseguinte, o saleiro simbolizava a presença de Deus à mesa. Os saleiros apresentam, geralmente, forma em píxide e são ricamente decorados. Os mais preciosos pertenceriam à sociedade mais abastada, sendo um objecto de prestígio.

 

Cena de refeição e organização do serviço com saleiro em ouro sobre a mesa.

Histoire de Renand de Montauban, final século XV. Conservado na Biblioteca Nacional de Paris, Arsenal, Ms 5072 Res.

 

Sobre a mesa colocavam-se, invariavelmente, os trinchos ou pratéis, os copos ou púcaros, os pichéis, o pão, o saleiro e, muitas vezes, a salsinha com os condimentos. No rol de bens do enxoval da Infanta D. Beatriz, em cerca de 1447, surgem 4 saleiros, dois dos quais da «mesa das donzelas». Através do inventário de bens da mesma Infanta D. Beatriz, em 1507, Braancamp Freire faz referência a quarenta e um saleiros de pau. Sabemos a partir de uma carta de quitação passada por D. Manuel em 1497, respeitante a Estêvão Pestana, que fora manteeiro de D. João II, que aquele recebera entre 1488 a 25 de Outubro de 1495, entre outras coisas, seis saleiros de prata. Os bainheiros vimaranenses faziam, em 1552 «caixas para saleiro e copo de pé». Estas serviam para que cada um, quando saísse de casa, pudesse facilmente transportar os utensílios pessoais que usava às refeições.

 

Para além do simbolismo do sal já anteriormente referido e também da benção dos alimentos (Benedictio esculentorum) em dia de Páscoa, com sal e rábano, que é justificada pelo cariz apotropaico contra as forças do mal, encontramos o sal, também ligado, com as práticas alimentares do Advento, do tempo da Quaresma, da Ascensão, quando a Igreja, de forma penitencial e dietética, pretendeu impor jejuns e abstinências. Proibiu-se o consumo exagerado de carne substituindo-a por peixe nas sextas-feiras da Quaresma. Aí surge o uso do sal, que tira a água, seca e conserva, exercendo, por isso, o papel de precioso auxiliar na manutenção do peixe.

 

Esta prática alimentar, motivada pela disciplina da Igreja, atravessou toda a Idade Média, sendo observada rigorosamente pelos cristãos. Como nos diz Frei Geraldo, e em quem nos apoiamos, os monges foram modelares no fomento desta prática. S. Bento (480-547), o grande legislador monástico do Ocidente no século VI e que impôs a sua Regra ao Monaquismo europeu, estipulava na Regra que a carne apenas se devia permitir aos doentes, por razão de caridade: «Igualmente se permitirá aos doentes muito fracos comer carne, para se fortalecerem; mas logo que se encontrem restabelecidos, todos se abstenham dela, conforme o costume».

 

Se analisarmos os textos medievais referentes aos mosteiros beneditinos e mesmo de outras ordens religiosas constataremos como aqueles se preocupavam em obter licenças de pesqueiras e obtenção de sal. Exemplo desta preocupação «era o mosteiro de S. João Baptista da Foz, pertencente ao mosteiro de Santo Tirso, que, por doação régia, obteve um Couto na Foz do Douro. Ali, o mosteiro de Santo Tirso mantinha uma pequeníssima representação monástica exactamente para recolher peixe e sal, que, depois, eram encaminhados para o mosteiro principal.»


FONTE

LIVRO DE COZINHA da Infanta D. Maria. Códice Português I. E. 33. da Biblioteca Nacional de Nápoles, Leitura de Giacinto Manuppella e Salvador Dias Arnaut; Prólogo, Notas aos textos, Glossário e Índices de Giacinto Manuppella. 1ª ed. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1967.

 

BIBLIOGRAFIA

ARNAUT, Salvador Dias - «A Arte de Comer em Portugal na Idade Média». In O Livro de Cozinha  da Infanta D. Maria de Portugal. 1ª ed. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1967.

BARROS, Amândio Jorge Morais – «O Porto, o Monopólio do Sal e a Estruturação da Economia Mercantil (Séculos XIII e XV)». In A articulação do Sal Português aos Circuitos Mundiais Antigos e Novos Consumos. Porto: Universidade do Porto, Instituto de História Moderna, 2008.

DIAS, Geraldo José Amadeu Coelho – «O Sal e sua ambivalente dimensão: sabor da comida e símbolo de preservação religiosa». In AMORIM, Inês (coord.) – I Seminário Internacional sobre O Sal Português. Porto: Universidade do Porto. Instituto de História Moderna, 2005.

FERNANDES, Isabel Maria – «Alimentos e alimentação no portugal Quinhentista». Revista de Guimarães. Sociedade Martins Sarmento, 2002.

GOMES, Sandra – Territórios medievais do Pescado no Reino de Portugal. Dissertação de mestrado em Alimentação - Fontes, Cultura e Sociedade. Universidade de Coimbra, 2011