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Arte, Cultura e Pastelaria

Arte, Cultura e Pastelaria

As salinas - um património a preservar

Graellsia, 02.11.12
     As zonas ribeirinhas sempre se mostraram favoráveis à fixação humana graças aos recursos que a terra e o clima ofereciam. A exploração dos recursos relacionou-se, pois, com a capacidade do homem observar e interpretar a natureza envolvente, de forma a conseguir a melhor rentabilidade. Assim, compreendemos que nas zonas alagadas, onde não era possível desenvolver a agricultura, uma vez que as águas das marés entravam através dos esteiros ou dos rios, o homem dedicou-se à exploração do sal.

     O marnoto antes de o ser, foi em primeiro lugar um agricultor, pois precisava de dominar as técnicas para amanhar e cultivar a terra. Precisava de conhecer a terra e as plantas que aí podia cultivar. Este conhecimento obtido pela experiência acumulada e transmitido de geração em geração constituiu o segredo que fez prosperar a nossa indústria salineira.

 

Salina Corredor da Cobra do Núcleo Museológico do Sal da Figueira da Foz durante o mês de Maio
 

    As salinas terão sido uma zona não só de exploração de sal, mas também de outros recursos alimentares, fornecendo aos que nelas trabalhavam os alimentos necessários para o dia-a-dia.

    Entendendo as marinhas como um lugar de memória e identidade relacionadas com a alimentação, e que merecem ser preservadas, procurei junto do Núcleo Museológico do Sal, promovido pela Autarquia da Figueira da Foz, recolher testemunhos das vivências de outrora e do esforço desenvolvido para a preservação do património cultural salícola.

    O Núcleo Museológico do Sal, da tipologia dos ecomuseus, não se limita ao espaço do edifício que recebe os objectos da exposição permanente, mas estende-se por todo o território da sua influência com um armazém do sal e com a rota das salinas de forma a despertar o interesse pelos múltiplos aspectos, desde os históricos, os etnográficos, os paisagísticos, os ambientais e os económicos. O edifício sede, para além da exibição das alfaias de trabalho, de quadros informativos, e da visualização de um filme, - possui um centro de documentação.

 

Moitas na Salina Corredor da Cobra
 

    Integrada directamente ao Núcleo encontra-se a marinha do Corredor da Cobra, que apresenta um espaço vivo da actividade salineira, e uma mais valia, onde a água, o sal, a geometria dos talhos, o trabalho e o saber dos marnotos entram na exposição de forma directa, permanente e como complemento ao discurso expositivo, promovendo assim a participação da população.

    Tive o privilégio de conversar com o marnoto que mantém a marinha do Corredor da Cobra viva e que salientou a capacidade daqueles que se dedicavam ao sal de rentabilizar os recursos alimentares existentes naquela viva extensão de salinas.

    Segundo o seu testemunho, todas as porções de terreno que serviam para delimitar as salinas ou aquelas que ficavam no seu termo, eram utilizadas para a produção agrícola, desde o cultivo de trigo, do milho, de aveia, da cevada, de favas, de cenouras, de couves, de feijões, de batatas. Os terrenos, devido à concentração de sódio, eram potencialmente ricos para a produção hortícola, não necessitando de qualquer tipo de adubo o que desafiava a qualidade dos bens ali cultivados, pois eram em muito superiores do que os cultivados em terrenos agrícolas próprios.

    Além da produção hortícola, aproveitavam o pescado existente no rio Mondego e nos braços de água do estuário – enguias, robalinhos, taínhas, barbos, lampreias; usufruindo, igualmente, da apanha de berbigão e de amêijoa.  Durante os meses de Inverno, quando os trabalhos nas marinhas reduziam significativamente, os marnotos dedicavam-se à pesca de mar.

 

Reprodução do momento das refeições entre os marnotos, Núcleo Museológico do Sal da Figueira da Foz
 

    As refeições faziam-se na própria salina, onde os marnotos partilhavam os alimentos que levavam de casa transportados no cofinho. E, sentados em bancos de madeira, à roda da fanga de medir o sal para os navios e usada como mesa, partilhavam as batatas que a labuta diária da terra oferecia e que eram cozidas no momento. Partilhavam o pão ou a broa de milho que cada um cozia no forno de casa. O conduto era o peixe, geralmente bacalhau, carapau, fanecas ou sardinha. Depois da confecção, utilizavam a pá de trabalho como suporte à refeição, onde cada marnoto picava a batata no azeite e o peixe na cama da fatia de pão ou broa. O vinho era o acompanhante da refeição que descia lentamente da cabacinha, denominada ternamente pelo marnoto, a poupadeira.

 

O Cofinho e a poupadeira, Núcleo Museológico do Sal da Figueira da Foz
  
A pá que servia de prato comum e os garfos em madeira, Núcleo Museológico do Sal da Figueira da Foz

   

    Com base no testemunho do marnoto da Salina da Cobra podemos reflectir que aqueles que trabalhavam nas salinas valorizavam e aproveitavam os recursos naturais na sua totalidade, dedicando-se a arrancar da natureza e do seio das águas as diversas espécies comestíveis, bem como o sal.

    A história social à volta das salinas, dos marnotos, os aspectos culturais do sal, a sua evolução na saúde pública e na alimentação, são aspectos que não podemos descurar de forma a valorizar e a preservar um património humano de inegável valor cultural e também paisagístico.

    Com a impossibilidade do sal competir com os sistemas de conservação a frio, mais eficientes e elaborados, são necessárias novas vias para a sua valorização e estratégias de defesa patrimonial das salinas. O caminho a percorrer passa pela valorização e certificação do sal tradicional, bem como encontrar novas potencialidades, como as que se estão a desenvolver a partir do estudo de plantas halófitas, como a salicórnia e a acelga, para a alimentação humana.

 

O sal armazenado, Núcleo Museológico do Sal da Figueira da Foz

Alimentação na Pintura ao longo da História da Arte

Graellsia, 02.10.12
   Desde a Pré-História que o ser humano se sente motivado para a criação de imagens como meio de expressão universal. De facto, os mais antigos desenhos datam de há 40 mil anos, quando o homem começou a transformar a realidade através da imagem mental que dela formava.

   A representação das presas : mamutes, bisontes, cavalos e outros animais, relacionou-se com a transitoriedade da vida nómada, e com a função propiciatória para a caça. Assim, no interior das grutas ou nas superfícies rochosas ao ar livre, esta arte é, antes de mais, uma tomada de posse e surge, segundo René Huyghe, como um meio concedido ao homem para se relacionar com o mundo exterior, bem como atenuar a diferença de natureza que o separa e o temor que experimenta perante ele.  

   As representações naturalistas dos animais reflectiam, assim, as preocupações de subsistência, pois eram o principal alimento.

   A História da Arte nasce, pois, para operar magia com os valores simbólicos da vida quotidiana, surgindo a alimentação e o acto de alimentar-se, como um dos temas principais das primeiras representações pictóricas.

   Apesar das transformações civilizacionais registadas desde a Pré-História aos nossos dias, a par da evolução cognitiva e cultural do homem, a concepção característica da Pré-História, do papel e do significado da arte, vai perpetuar-se e desenvolver-se.

   A imagem apresenta-se como um verdadeiro duplicado do seu original e dota-o com os mesmos poderes que aquele. Vai ser na arte do Antigo Egipto que se vai afirmar esta noção do duplicado mágico equivalente ao seu modelo. Nas pinturas murais dos túmulos, as cenas da vida quotidiana asseguram ao morto o seu uso eterno. Dessa forma, a arte mágica e a arte narrativa conjugam-se perfeitamente.

 

Caça nos pântanos. Tebas, Egipto, c. 1350 a.C
 

   As cenas com representações de oferendas, de caça a aves selvagens e de pesca, passatempo dos reis e dos senhores, as representações de jardins e de animais domésticos familiares na quinta, as representações das actividades quotidianas como o joeiramento de grão na eira, oferecem-nos uma noção da alimentação no Antigo Egipto.

 

Natureza-morta - Fresco de Pompeia, c. 70 d.C
 

   Na Civilização Clássica Greco-Romana, a arte, concebida essencial e conscientemente tendo em vista o «deleite» do espectador, procurou suscitá-lo quer através do realismo, quer da harmonia. A arte Clássica fundada na verdade exacta, revela-nos o quotidiano alimentar através da pintura que decorava os objectos de cerâmica, os frescos, bem como os desenhos nos mosaicos. As naturezas-mortas e as cenas do quotidiano são pequenas obras-primas, com as formas a revelarem um realismo exemplar, as cores e os brilhos, denotando grande atenção e singularidade pelo detalhe.

   Com o advento do Cristianismo, a pintura foi um dos meios encontrados para educar os membros da Igreja que não sabiam ler nem escrever. O Papa Gregório Magno, que viveu em finais do século VI lembrou que a «pintura pode fazer pelos analfabetos o que a escrita faz pelos que sabem ler». Assim, os mosaicos e os frescos funcionavam como uma forma de representar, de maneira clara e simples, as passagens bíblicas, omitindo tudo o que pudesse desviar a atenção da finalidade principal. A maioria das obras apresenta elementos místicos como anjos, divindades ou mesmo parábolas bíblicas. Podemos observar nos mosaicos representações animais como o peixe, que possui um papel importante na simbologia cristã.

 

 

O peixe - Tacuinum Sanitatis, Século XV. Paris, BNF
 

   No final da Idade Média, seguindo o modelo litúrgico dos breviários utilizados pelos padres desenvolveu-se durante o século XIV, um livro de devoções privadas – os «Livros de Horas». Estes fornecem-nos um conjunto de imagens surpreendentes, revelando até que ponto, nesta época, os artistas se sentiam atraídos pelo mundo real e a exactidão com que o representavam.

   As numerosas imagens de refeições presentes nos «Livros de Horas» revelam, claramente, os hábitos e os rituais à mesa, nomeadamente aqueles que decorriam nos círculos aristocratas.

   Com a dissipação da época medieval, emergiu um novo espírito alicerçado no renascimento do Humanismo e do Classicismo Antigo. As novas técnicas e uma nova perspectiva do mundo conduziram a uma nova estética, tão clássica como cristã. Emerge a representação de temas do quotidiano, nos quais a alimentação surge como assunto fundamenta, contudo o carácter fortemente religioso permanece.

 

 

Hieronymus Bosch - O Jardim das Delícias (detalhe, painel central), 1504
 

   Hieronymus Bosch (c. 1450-1516) tratou em inúmeras obras o pecado da gula, perante o qual a Igreja lutou firmemente durante a Idade Média. Flores, animais, frutos e legumes são elementos inseparáveis da conotação bíblica. Por exemplo, as naturezas-mortas com uvas, maçãs ou peras representam o sangue de Cristo e o seu amor à Igreja. O pão e o vinho da Última Ceia, ou a lagosta associada às uvas, simbolizam a ressurreição de Cristo.

 

 

Pieter Bruegel, o Velho - O casamento dos camponeses, c.1567
 

   Pieter Bruegel, o Velho (1525-1569), pintor activo em Antuérpia e Bruxelas, próximo dos humanistas, ocupou-se sobretudo do quotidiano do povo, das suas actividades e dos seus costumes, dos banquetes, numa dinâmica diária.

   Cenas de mercados, talhos, padarias ou, ainda, insumos abundantes para a época, como pães, vinho, ovos e leite, compõem um retrato perfeito da experiência quotidiana.

   Os alimentos conhecem um verdadeiro sucesso a partir do século XVII, contudo a alimentação não constitui ainda o tema principal das obras, mas apresenta-se como elemento fulcral para a totalidade do tema. A alimentação é o acompanhamento perfeito para as cenas quotidianas, sendo a sua presença, envolta num profundo simbolismo.

 

Caravaggio - A Ceia de Emaús, c. 1601
 

   A pintura traduz mais do que uma atmosfera, uma emoção, sendo que as naturezas-mortas não estão limitadas apenas às reproduções de alguns pratos sobre a mesa. As naturezas-mortas, tal como na arte Clássica, transformam-se em verdadeiras composições através das pinceladas de Caravaggio, Zurbarán, Velázquez, ou Cotán.

 

Josefa d'Óbidos - Cesta com cerejas, queijos e barros, c. 1670-80
 

   Josefa de Óbidos (1630-1684), pintora excepcional do barroco português, pintou inúmeras naturezas-mortas, valorizando o doce. É impossível desligarmos a representação dos alimentos do simbolismo religioso presente na sua pintura.

   Durante o século XVIII, Jean-Siméon Chardin pintou, igualmente, numerosas naturezas-mortas, valorizando as sensações, de forma a recuperar toda a dimensão sensual dos alimentos, as suas obras são verdadeiramente degustadas, pelos olhos. 

 

Chardin - Cesta com morangos silvestres, 1761
 

   Com a Revolução Industrial nasceu um dos movimentos artísticos que mais recorreu à alimentação como temática, o Impressionismo. O Impressionismo teve como principais representantes Claude Monet e Pierre Auguste Renoir que transportaram para as suas telas cenas ao ar livre, como piqueniques, restaurantes e cafés, em telas caracterizadas por pinceladas vibrantes e coloridas. Paul Cézanne modernizou com o seu pincel as naturezas-mortas ao capturar os frutos com cores vigorosas, oferecendo, pois, à arte, um novo sentido de expressividade.

 

Van Gogh - Interior de um restaurante, 1887
 

   Omnipresente na História da Arte, a temática da alimentação foi desenvolvendo-se ao longo de movimentos, tendências e escolas artísticas. Cada época interpretou de uma forma diferente, segundo o contexto sócio-cultural da época. No Modernismo, o tema da alimentação foi influenciado pelas Grandes Guerras, originando telas vanguardistas como Picasso. Com a Arte Contemporânea nascem diversas correntes estéticas, como o Pós-Modernismo e a Pop Art, em que os alimentos tornaram-se base de ironia, como nas latas da sopa Campbell de Andy Warhol.

 

Jean Hélion - Les Pains, 1951
 

   Mais recentemente, a Arte Contemporânea apropriou-se da alimentação para criar obras efémeras, simbolizando tudo o que é perecível.

   Na verdade, os artistas contemporâneos procuram reabilitar a representação dos alimentos, enaltecendo a paixão e o prazer que o comer sempre causou no homem.

Livro «Fabrico Próprio» 2ª Edição

Graellsia, 29.06.12

Há cerca de três anos atrás descobri o livro Fabrico Próprio pela mão do meu Grande Mestre de Pastelaria Paulo Santos na Escola de Hotelaria e Turismo de Óbidos. Foi com naturalidade, que vi crescer a minha admiração pelo trabalho louvável, de pesquisa e de inventário, sobre a nossa pastelaria «semi-industrial» ou chamada de uma maneira geral «de balcão» ou «de rua».

 

Segundo a informação do Fabrico Próprio, o livro Fabrico-Próprio - o design da pastelaria semi-industrial portuguesa é um livro que se dedica à pastelaria portuguesa e à sua relação com o design, apresentando um «registo enciclopédico» de toda a pastelaria quotidiana.

 

Está para breve a tão esperada 2ª edição do livro e é com alegria que espero o meu, numerado com o número 123.

 

O endereço onde poderá ser encontrada a informação relativamente ao projecto Fabrico Próprio - http://www.fabricoproprio.net/

 

O sal na alimentação medieval

Graellsia, 17.06.12

Venda de sal

Tacuinum Sanitatis, Século XV. Conservado na Biblioteca Nacional de Paris, Latin 9333, fol. 60

 

O sal, além de mercadoria indispensável e base de muitas actividades do sector das exportações, era essencial aos padrões de consumo medievais, afirmando-se como substituto das dispendiosas especiarias, tempero de alimentos incomestíveis sem ele, com destaque evidente para o pão, condimento que disfarçava o estado de decomposição de certos mantimentos, conservante destes mesmos alimentos sobretudo nos meios rurais onde as carnes da matança deviam durar longo tempo e, claro, para a salga do pescado.

 

A salga de carne deveria ser prática corrente, mormente utilizada em tempo de guerra. Na Crónica de D. João I, de Fernão Lopes temos indicação que em 1384, os moradores de Lisboa, em iminência do cerco «traziam muitos gados mortos que salgavam em tinas».

 

Os alimentos poderiam ser temperados enquanto se cozinhavam, mas também se poderiam temperar em cru – por exemplo, temperar uma salada com sal, azeite e vinagre ou através de marinadas, estas comprovadas pelo «poeta docentista Airas Peres Vuitorom que comeu em casa do rei, capão, cabrito, e lombo de vinho e de alhos e de sal».

 

O sal era utilizado na produção da manteiga com sal, que por ser um produto de fácil e de rápida deterioração, necessitava de sal na sua preparação não só para promover um sabor mais apelativo mas, principalmente, por necessidade de conservação. Era também utilizado no queijo, como tempero e como conservante, e também na salmoura das azeitonas.

 

O Livro de Cozinha da Infanta D. Maria permite-nos conhecer a importância do sal nas confecções culinárias. Era, frequentemente, utilizado nos manjares de carne, comprovado: na tigelada de perdiz - «Pô-la-ão em cima das brasas a ferver/ temperada com seu sal»; nos pastéis de tutanos - «com os tutanos e os ovos, e temperá-los-ão com sal»; no alfitete - «E dês que for a galinha muito bem cozida e temperada com seu sal»; na receita das morcelas, com a quantidade exacta de sal a utilizar - «tomarão vinte e cinco onças de sal moído»; em outra receita de tutanos - «das espáduas do mais gordo porco que se puder achar, /e cozê-/-lo-ão com sua água e sal (…) e na presa deitarão uma pouca manteiga /e água-de-flor e sua têmpera de sal»; na receita de vaca picada em seco, coloca-se o sal durante a cozedura, juntamente com os outros temperos ou adubos - «E depois que começa de ferver tem-/perada com vinagre e com seu sal, e os adubos/ é cravo e açafrão e pimenta e gengibre»; nos pastéis lepardados que são temperados unicamente com sal – «e não/ há-de levar senão água e sal»; na galinha mourisca, temperada também durante a cozedura - «depois que ferver, temperá-la-ão/ de seu sal». Não encontrarmos a utilização do sal nos manjares de ovos, mas surge, apesar de menos frequente em relação às carnes, nos manjares de leite: no manjar-branco onde existe o cuidado de nos alertar que o sal entra somente na última etapa da confecção - «Tomareis o peito de uma galinha/ preta e pô-lo-eis a cozer sem sal, (…) e deitar-/-lhe-eis sal com que se tempere»; nos pastéis de leite somos informados que estes não levam sal - «Tomarão um tacho e pô-lo-ão ao fo-/go com quantidade de água quanto leve/ um púcaro de meio arrátel, e sem sal.»; na tigelada de leite - «deitarão este/ polme, que será temperado com sal»; na tigelada de leite de Dona Isabel de Vilhena - «E deitar-lhe-ão/ um arrátel de açúcar pisado, e des-/façam-no muito bem com o leite e ovos,/ e lancem-lhe sal que for necessário, e seja cozido para que se desfaça melhor.». Temos referência à salmoura nas conservas, particularmente, na receita da abóbora - «E primeiro que a deitem [a abóbora], lancém na água uma/ mão-cheia de sal (…) E depois coarão esta/ salmoura (…) E depois/ destes três dias provem a abóbora, e, se/ não for ainda fora da salmoura, tor-/nem a trazer na água fria outros três dias».

 

Saleiro em ouro de proveniência francesa do século XIII

The Cloisters Collection, The Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque

 

Podemos depreender da leitura d’O Livro de Cozinha da Infanta D. Maria, que a utilização do sal nas confecções nem sempre obedecia a quantidades
determinadas, a não ser quando estas eram expressas - «vinte e cinco onças de sal moído»; «mão-cheia». Podemos então dizer que nas cozinhas medievais a quantidade de sal utilizada seguiria o bom senso e o gosto da época.

 

Sabemos que o sal tinha presença habitual à mesa devido à profusão de saleiros em ouro, prata e madeira, permitindo-nos pensar que cada comensal podia salgar a comida a seu gosto, mas também, porque o sal detinha um papel complexo perante o simbolismo religioso. Representava a aliança entre Deus e o seu Povo. Por conseguinte, o saleiro simbolizava a presença de Deus à mesa. Os saleiros apresentam, geralmente, forma em píxide e são ricamente decorados. Os mais preciosos pertenceriam à sociedade mais abastada, sendo um objecto de prestígio.

 

Cena de refeição e organização do serviço com saleiro em ouro sobre a mesa.

Histoire de Renand de Montauban, final século XV. Conservado na Biblioteca Nacional de Paris, Arsenal, Ms 5072 Res.

 

Sobre a mesa colocavam-se, invariavelmente, os trinchos ou pratéis, os copos ou púcaros, os pichéis, o pão, o saleiro e, muitas vezes, a salsinha com os condimentos. No rol de bens do enxoval da Infanta D. Beatriz, em cerca de 1447, surgem 4 saleiros, dois dos quais da «mesa das donzelas». Através do inventário de bens da mesma Infanta D. Beatriz, em 1507, Braancamp Freire faz referência a quarenta e um saleiros de pau. Sabemos a partir de uma carta de quitação passada por D. Manuel em 1497, respeitante a Estêvão Pestana, que fora manteeiro de D. João II, que aquele recebera entre 1488 a 25 de Outubro de 1495, entre outras coisas, seis saleiros de prata. Os bainheiros vimaranenses faziam, em 1552 «caixas para saleiro e copo de pé». Estas serviam para que cada um, quando saísse de casa, pudesse facilmente transportar os utensílios pessoais que usava às refeições.

 

Para além do simbolismo do sal já anteriormente referido e também da benção dos alimentos (Benedictio esculentorum) em dia de Páscoa, com sal e rábano, que é justificada pelo cariz apotropaico contra as forças do mal, encontramos o sal, também ligado, com as práticas alimentares do Advento, do tempo da Quaresma, da Ascensão, quando a Igreja, de forma penitencial e dietética, pretendeu impor jejuns e abstinências. Proibiu-se o consumo exagerado de carne substituindo-a por peixe nas sextas-feiras da Quaresma. Aí surge o uso do sal, que tira a água, seca e conserva, exercendo, por isso, o papel de precioso auxiliar na manutenção do peixe.

 

Esta prática alimentar, motivada pela disciplina da Igreja, atravessou toda a Idade Média, sendo observada rigorosamente pelos cristãos. Como nos diz Frei Geraldo, e em quem nos apoiamos, os monges foram modelares no fomento desta prática. S. Bento (480-547), o grande legislador monástico do Ocidente no século VI e que impôs a sua Regra ao Monaquismo europeu, estipulava na Regra que a carne apenas se devia permitir aos doentes, por razão de caridade: «Igualmente se permitirá aos doentes muito fracos comer carne, para se fortalecerem; mas logo que se encontrem restabelecidos, todos se abstenham dela, conforme o costume».

 

Se analisarmos os textos medievais referentes aos mosteiros beneditinos e mesmo de outras ordens religiosas constataremos como aqueles se preocupavam em obter licenças de pesqueiras e obtenção de sal. Exemplo desta preocupação «era o mosteiro de S. João Baptista da Foz, pertencente ao mosteiro de Santo Tirso, que, por doação régia, obteve um Couto na Foz do Douro. Ali, o mosteiro de Santo Tirso mantinha uma pequeníssima representação monástica exactamente para recolher peixe e sal, que, depois, eram encaminhados para o mosteiro principal.»


FONTE

LIVRO DE COZINHA da Infanta D. Maria. Códice Português I. E. 33. da Biblioteca Nacional de Nápoles, Leitura de Giacinto Manuppella e Salvador Dias Arnaut; Prólogo, Notas aos textos, Glossário e Índices de Giacinto Manuppella. 1ª ed. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1967.

 

BIBLIOGRAFIA

ARNAUT, Salvador Dias - «A Arte de Comer em Portugal na Idade Média». In O Livro de Cozinha  da Infanta D. Maria de Portugal. 1ª ed. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1967.

BARROS, Amândio Jorge Morais – «O Porto, o Monopólio do Sal e a Estruturação da Economia Mercantil (Séculos XIII e XV)». In A articulação do Sal Português aos Circuitos Mundiais Antigos e Novos Consumos. Porto: Universidade do Porto, Instituto de História Moderna, 2008.

DIAS, Geraldo José Amadeu Coelho – «O Sal e sua ambivalente dimensão: sabor da comida e símbolo de preservação religiosa». In AMORIM, Inês (coord.) – I Seminário Internacional sobre O Sal Português. Porto: Universidade do Porto. Instituto de História Moderna, 2005.

FERNANDES, Isabel Maria – «Alimentos e alimentação no portugal Quinhentista». Revista de Guimarães. Sociedade Martins Sarmento, 2002.

GOMES, Sandra – Territórios medievais do Pescado no Reino de Portugal. Dissertação de mestrado em Alimentação - Fontes, Cultura e Sociedade. Universidade de Coimbra, 2011

Pão de Maçã

Graellsia, 05.05.12
 

Ingredientes:

450g de Farinha Trigo T65        

50g de Farinha de Centeio Integral

290g de Água

10g de Levedura

7g de Sal

15g de Manteiga

10g de Açúcar

15g de Leite em pó

200g de Maçã (em brunesa)

 

Preparação:

Misturar o leite em pó e o sal com as farinhas, na tina da amassadeira. Adicionar 2/3 da água e iniciar a amassadura.

Juntar a manteiga e o açúcar a meio da amassadura.

Ir incorporando a água aos poucos.

Adicionar a levedura a cinco minutos do final da amassadura.

Fazer o teste do véu, para se certificar do grau de amassadura.

Incorporar a maçã cortada em brunesa e previamente passada por uma solução de água e sumo de limão, na amassadeira em velocidade lenta.

Verifique a temperatura da massa (27⁰C).

Deixar levedar cerca de 15 minutos (fermentação inicial).

Pesar porções de massa com 80g.

Enrolar os empelos, deixando-os bem fechados.

Arrumar no tabuleiro e deixar levedar até duplicar o volume (Fermentação Final, cerca de 1h:30m).

Com a ajuda de uma peneira, espalhar um pouco de farinha por cima do pão.

Coze a 240ºC.

 

 Luigi Bechi - Duas crianças partilham pão e maçãs (c.1870)

 

A Festa de Babette

Graellsia, 29.04.12

     Com o objectivo de mostrar a relação entre Cinema e Alimentação enquanto fonte histórica e de análise à sociedade, apresento parte da análise ao filme A Festa de Babette que realizei no âmbito do Mestrado em Alimentação – Fontes, Cultura e Sociedade, para a disciplina de Cinema.

 

     Cinema como memória colectiva

     Desde o início da História do Cinema, que se reflectiu sobre a imagem como expressão da realidade e da verdade. Segundo Boleslas Matuszewski, que trabalhou com os Irmãos Lumière, o Cinema não dá a História integral, mas o que ele nos fornece é incontestável e de uma verdade absoluta.   

     Assim, somos levados a atribuir ao Cinema o valor de verdade e ao filme a importância de documento histórico. É possível ao historiador identificar no filme elementos que o ajudam a compreender a sociedade para além das representações operadas pelos grupos dominantes. O filme fala sobre o tempo da sociedade produtora, sobre os valores da época, mas também revela como a sociedade que vê o filme olha para si mesma ou como olha os eventos do passado. O filme permite-nos reflectir sobre os valores que as sociedades transportam.

 

     Cinema e Alimentação

     Cinema e Alimentação são conceitos que vivem em uníssono, porque ambos são fruto da acção e cultura humana, com um mesmo propósito – viver sensações. Quer a experiência gastronómica, quer a cinematográfica, resultam em ricas experiências sinestésicas. Então, o que sentir quando ambas as experiências se unem? Oferecem-nos uma experiência ímpar, de cor, movimento, acção, desejo, aprendizagem, conhecimento e «degustação». Ambas são Arte e Cultura. Sobre cultura e alimento, Ernesto Veiga de Oliveira diz-nos que «é desnecessário acentuar a importância do alimento como factor primordial de cultura», visto que da alimentação, nasce a cultura. Ou seja, através da recolha do alimento e da sua preparação, o Homem foi evoluindo, pois foi a «partir dessas actividades, prolongando a função biológica, que surgiu o Homem como ser cultural». São duas realidades indissociáveis.

 

 

     A Festa de Babette

     A Festa de Babette, obra-prima do realizador dinamarquês Gabriel Axel e inspirado no livro de Karen Blixen - conhecida pelo pseudónimo Isak Dinesen, insere-se no rol de filmes que têm como cerne a comida, sendo mesmo considerada por Steve Zimmerman, o filme que deu início ao género dos filmes sobre alimentação. A Festa de Babette realizada em meados da década de oitenta, do século XX, transita em torno da preparação dos alimentos, da figura do cozinheiro ou do acto de sentar-se à mesa. A comida não é entendida apenas pelo seu carácter nutricional, mas fundamentalmente, inserida numa cultura, rodeada de sociabilidades e imbricadas na História. Ou seja, alimentar-se é um acto nutricional, comer é um acto social, pois constitui atitudes, ligadas aos usos, costumes, protocolos, condutas e situações.

     Somos confrontados com um dos momentos de maior prazer do ser humano, o da comida. É no banquete de Babette que se revela a vida esquecida das personagens, quer no passado ou nos sonhos esquecidos. É no prazer do gosto, do cheiro dos pratos servidos, que quase sentimos o aroma espalhado pelos espectadores, que se descobre que a vida não é linear, que o quotidiano pode ser interrompido a qualquer momento, e revelar não só as obrigações sociais e religiosas de uma existência, como as surpresas do eu adormecido, dos sonhos do que se pretendeu ser e do que nos tornamos.

 

     Estrutura Narrativa (Sequências)

     Segundo Robert McKee, A Festa de Babette insere-se na categoria de «filme artístico».

     A primeira sequência do filme caracteriza-se pela apresentação das duas irmãs, Philippa e Martina, e pelas suas escolhas, de forma a permaneceram com o pai no serviço religioso da Igreja. Termina quando Achille Pappin regressa a Paris, deixando uma das irmãs por quem se apaixonara, Phillipa. A segunda sequência, inicia-se trinta e cinco anos mais tarde. O pastor já falecera e as duas irmãs envelheceram, contudo os ideais religiosos do pastor continuam vivos. Neste ponto surge Babette como empregada das irmãs, o momento em que a história, efectivamente, começa.
     Durante esta sequência vemos a continuidade do trabalho de Babette para as duas irmãs, correspondendo a um tempo real de 14 anos. Ao longo desse tempo, começam a surgir queixas dos membros da Igreja. O primeiro caos acontece quando Babette recebe uma carta de França a contar-lhe que ganhara 10 mil francos na Lotaria. Nesse momento, ao ver que Babette ficara rica, as duas irmãs sentiram medo da sua partida para França.

Babette oferece-se para confeccionar e preparar um jantar francês para os habitantes da aldeia em comemoração do centésimo aniversário do Pastor. Aquando dos preparativos de Babette para a refeição, um novo caos ocorre – o pesadelo de Martina. A irmã sonha que Babette possui poderes demoníacos e que o jantar será o resultado de bruxaria. Este momento vai definir a quarta sequência que apresenta a Festa, propriamente dita e que dá título ao filme.

     A última sequência do filme abre com o temor dos paroquianos perante a comida confeccionada por Babette. Estes combinaram não tecer qualquer comentário face à comida durante o jantar. Contudo, ao longo da degustação eles são atraídos pelo prazer que os alimentos proporcionam.

Consequência desse sentimento é a harmonia e a união dos laços entre Irmãos, anteriormente quebradas. Além disso, a quarta sequência termina com Babette a contar às irmãs que gastara todo o seu prémio na preparação do Jantar, que ela fora uma chef famosa em Paris e que permaneceria com as irmãs em vez de voltar a França.Com esta notícia, os corações de Martina e Phillipa acalmaram-se, terminando assim a história.

 

 

     Fotografia e Música

     As cenas fílmicas são de um profundo poder contemplativo para o qual a qualidade da Fotografia e da Música concorrem. O mundo das irmãs é pintado com uma paleta de tons cinzentos, pretos e branco. Elas vivem num mundo frio e prudente num amontoado de casas pequenas à beira-mar. A ferocidade do clima está sempre presente, com o céu carregado de nuvens, com a tempestade, com o vento a soprar. Essa austeridade é intensamente retratada na cena da preparação dos alimentos, onde as irmãs ensinam Babette, recém-chegada, a confeccionar a refeição tradicional, de peixe seco que deve ser demolhado e do pão de cerveja que se assemelha a umas papas.

     Em contraste, as cenas posteriores do filme, em que Babette, tendo gasto o dinheiro da lotaria nos ingredientes para a refeição, prepara e serve a festa, são de uma incrível sensualidade com cor e textura. O linho da toalha de mesa, decorada com castiçais de prata que reluzem. A comida em si é simplesmente uma maravilha – a codorniz dentro da cesta de massa-folhada, um pedaço de tartaruga bóia na sopa fumegante, a delicadeza da pastelaria, um bolo num ninho de frutas confitadas é regado com licor. No final, há uvas e figos suculentos e maduros que rebentam com a dentada.

     Gabriel Axel conseguiu criar visualmente uma refeição preparada por uma artista. Durante todo o filme somos acompanhados pelo silêncio, pontuado apenas pelo som natural das ondas do mar, do vento, do abrir e fechar das portas, do toque do papel, do tilintar das louças, dos sinos da Igreja, do chá, do vinho a escorrer para as chávenas e copos, dos passos.

     A música é introduzida de duas maneiras especiais: no canto dos hinos da Igreja que nos dão conhecimento dos anseios e crenças profundamente arraigadas da comunidade e no uso de um solo de piano e de um dedilhar de violino que entra em algumas cenas significativas como um sublinhado trémulo e comovente. Assim, acabamos por ser convidados a entrar na realidade dos próprios personagens, em que a nossa respiração se confunde com a deles.

 

 

     O Banquete do ponto de vista filosófico e social

     O banquete representava tudo aquilo contra o qual as irmãs Philippa e Martina haviam lutado durante a vida em nome do pai, ou seja, o prazer, a comensalidade, a sensualidade. O que Philippa e Martina mal sabiam é que a «orgia», no sentido atribuído por Maffesoli, constitui uma via alternativa à religião, à fusão cosmológica com o sagrado.

     Para Nei Lima, A Festa de Babette, representa uma outra via para atingir a pureza, o sagrado e/ou o divino: «À mesa, os dois mundos, o da sobriedade e o da sensualidade. Ou melhor, três: entre os dois, a gratidão, em forma de delícias sensuais que Babette oferecia às irmãs e aos seus convidados. O que Babette parecia querer dizer é que não é preciso recusar os prazeres corporais para que o espírito prossiga justo e correcto. Que esses prazeres podem ir além da simples dissipação dos sentidos para significar gratidão e generosidade. É inicialmente esse gesto (dito na forma de um banquete fausto) o que provoca o malogro das promessas que fizeram de se manterem puros, negando qualquer prazer que viesse do campo discursivo da comida».

     A partir do entendimento do «banquete» como um ritual é que atingimos o «Banquete» como mito no imaginário filosófico e religioso ocidental. Tal como o Banquete de Platão, a função do amor é a de criar a virtude nos homens por meio da beleza. A declaração de Babette, no final do filme, logo após as irmãs questionarem-na quanto ao gasto de todo o prémio da lotaria confirma este juízo. Afinal, Babette não se encontrava mais pobre ou mais rica do que antes, na verdade, havia resgatado parte do amor perdido anos atrás com a arte que Deus lhe dera de fazer magia através da arte gastronómica. Por outras palavras, o banquete é uma declaração estética de amor à vida, à sociabilidade, à sensualidade, à comensalidade, enfim, à comunhão dos homens.

 

 

     O Banquete como Fábula da Cozinha Francesa

     A apresentação do jantar é revelada em cada pormenor. Babette prepara os animais, coloca a mesa, cozinha, peneira, salteia, faz bolos, emprata, corta os queijos, decora.

     O serviço de mesa é à francesa, onde os pratos são servidos um de cada vez. De início, a sopa de tartaruga, acompanhada por um Amontillado, vinho Jerez de cor âmbar, seco e fortificado, de origem espanhola. As entradas foram concluídas com o Blinis Demidoff, acompanhado de um Champagne  Veuve Cliquot de 1860. Dos pratos principais, o destaque vai para o Cailles en sarcophage, ou seja, codornizes assadas no forno, em caixa de massa folhada (vol-au-vent).

     Depois dos pratos principais, os queijos; em seguida, as sobremesas doces (kuglehopf) e as frutas (ananás, uvas, figos, papaias). Após o café, um Cognac superior, un fine champagne. A prima donna do jantar foi o Champagne, mas um vinho tinto servido também mereceu referência especial: um Clos Vougeot 1846. Este vinho é um Bourgogne, originário das vinhas da Côte de Nuits, bastante apreciado na época, e marcava presença nas cartas de vinhos de restaurantes famosos em Paris.

 

 

     Conclusão

     Existem três conceitos muito importantes: a arte, os artistas e a sociedade. Encontramos a arte da música e da gastronomia; os artistas em Babette, Pappin e Philippa; a sociedade no General e no Grupo de discípulos. O General, marca da modernidade e de abertura ao mundo, serve como ponte na sociabilização do gosto e na abertura aos sabores e experiências ao grupo de discípulos.

     Um dos motivos centrais da narrativa foca a discussão sobre a arte na sua relação com o criador e o público. A Gastronomia apresenta-se como arte interactiva, não só enquanto combinação de sentidos (gosto, olfacto, audição, vista e tacto), mas porque nela os actos de criar, fazer e fruir estão intimamente relacionados.

     O Jantar de Babette permitiu-lhe oferecer aos outros o que de melhor ela tinha para dar e como resultado surpreendente conseguiu oferecer a Felicidade e a Renovação.

     Além da moralidade presente ao longo do filme, onde a comida surge como metáfora para a apresentar, podemos sugerir que a escritora do romance que deu origem ao filme, Karen Blixen, através de um erro histórico procurou chamar a atenção para as poucas mulheres ou, mesmo inexistentes, na Chefia das cozinhas no século XIX ou mesmo nos nossos contemporâneos. Na época temporal da narrativa, o Chef do Café Anglais era Adolphe Dugléré e este não permitia de forma alguma a permanência de mulheres na sua Cozinha.

 

     Para finalizar, fica uma das frases finais de Babette - «Um grande grito sai da alma do artista, deêm-me a oportunidade de fazer o meu melhor».

 

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FONTE

Filme A Festa de Babette de Gabriel Axel, 1987

 

BIBLIOGRAFIA

ANTUNES DOS SANTOS, Carlos Roberto - A Alimentação e o seu lugar na História: os tempos da memória gustativa. História: Questões & Debates. Curitiba: Editora UFPR, nº 40, 2005

AUMONT, Jacques; Marie, Michel - A análise do Filme. edições Texto e Grafia, 2010

FERGUSON, Priscilla Parkhurst Babette’s Feast, a Fable for Culinary France. In FERGUSON, Priscilla Parkhurst – Accounting for Taste- The triumph of French Cuisine. Chicago:
University of Chicago Press, 2006.

LIMA, Nei Clara de – A festa de Babette: consagração do corpo e embriaguês da alma. Horizontes Antropológicos. Porto Alegre, 1996. Vol. 2, nº 4

McKEE, Robert – Story, Substance, Structure, Style, and the Principles of Screenwriting. New York: Regan Books, 1997.

ZIMMERMAN, Steve – Food in the movies. North Carolina: McFarland, 2010. 2ª ed

Sabores da Páscoa

Graellsia, 17.04.12
A doçura e o mundo mágico do simbolismo marcaram presença no Casino Figueira durante os «Sabores da Páscoa».
 

 

Produtos da nossa doçaria beirã, como o Bolo de Ançã, as Nevadas de Penacova, os Pastéis de Tentúgal, os Ovos Moles, as Sardinhas Doces de
Trancoso, o Folar de Vale de Ílhavo, estiveram presentes no Casino Figueira, oferecendo a oportunidade de os conhecermos melhor, de os degustar, de aprender os seus métodos de confecção, os segredos que estão por trás de cada receita, os quais, por vezes, passam apenas pela temperatura das mãos que a confecciona como acontece no amassar o Bolo de Ançã.

 

A mostra da doçaria esteve a cargo das respectivas Confrarias, a saber, do Bolo de Ançã, da Lampreia, de Tentúgal, dos Ovos Moles, de Trancoso e
das Sainhas.

 

A Gastronomia de uma região, de um país é um tesouro valioso tal como a arte, a etnografia, a língua e a literatura. Faz todo o sentido colocar em relevo esta expressão cultural, enriquecedora da nossa tradição. É uma maneira de promover um património imaterial original, que importa preservar e reabilitar.

 

Preservar receitas é preservar tradições e culturas e, assinale-se, o facto de as Confrarias terem um papel fundamental nessas acções preventivas e
de promoção, bem como cada um de nós.

 

Na Sexta-Feira Santa decorreu o show-cooking sobre a Tradição dos Folares da Páscoa apresentado por mim e pela minha amiga, também pasteleira,
Edite Penas. De mesa enfarinhada e mãos na massa, viajamos pelo mundo rico do folar em Portugal, percorrendo os caminhos e sabores do folar da beira litoral, característico pelos ovos, o folar transmontano, de Vouzela, do Algarve, de Castelo de Vide e do folar de Azeite.  

Foi um privilégio a oportunidade de participar neste evento, onde partilhamos  o saber fazer de cada folar, tradição e simbologia. E, no final, a degustação e harmonização entre todos os participantes.

 

Agradeço à Grã-Mestre Chanceler da Confraria dos Pastéis de Tentúgal, Olga Cavaleiro, por ter acreditado desde o início que seriamos capazes de valorizar a nossa Arte e pelo seu apoio incondicional. Agradeço, igualmente ao Casino Figueira, porque também desde o primeiro momento acreditou e nos apoiou, incansavelmente.  

 

Partilho agora as fotos do show-cooking, À Descoberta do Folar

 

 

 
 
 
 
 
 

Simbologia na Páscoa

Graellsia, 05.04.12

    Ernesto Veiga de Oliveira dedica um artigo aos Folares e Ovos da Páscoa em Portugal na sua obra Festividades Cíclicas em Portugal. Seguirei, pois, as palavras do autor quase à letra. Após os meses de Inverno e a longa privação da Quaresma, a Páscoa dá início a uma intensa actividade em termos de preparações culinárias e de intercâmbio. A Páscoa é, pois, uma época característica de presentes cerimoniais, nomeadamente de natureza alimentar, os «folares». A palavra, porém, numa acepção restrita e mais precisa, designa um certo tipo de bola, específica do ciclo pascal.

 

    Como bola de Páscoa, existem, em Portugal, diferentes espécies de «folares»; o mais corrente e difundido é o de bolo em massa seca, doce, e ligada, feito com farinha de trigo, ovos, leite, azeite, banha, açúcar e fermento, e condimentado com canela e ervas aromáticas, geralmente erva-doce, – uma espécie de regueifa ou fogaça -, encimado, conforme o seu tamanho, por um ou vários ovos cozidos inteiros e em certos lugares tingidos, meio incrustados e visíveis sob as tiras de massa que os recobrem. Este tipo de «folares» constitui a regra quase sem excepção em todo o Sul do País, no Algarve e no Alentejo, e é corrente na Estremadura e nos arredores de Lisboa; no Centro do País, é ainda mais frequente nas Beiras, e encontra-se também na região do Douro. Contudo, no Nordeste montanhoso e no planalto de Trás-os-Montes, o «folar» é diferente. A massa leva farinha, ovos, leite, manteiga e azeite e encerra bocados de carne de toda a espécie – vitela, frango, coelho e, sobretudo, porco, presunto e rodelas de salpicão – cozidos dentro da massa.

 

    Conforme as regiões e localidades, os «folares» doces podem apresentar algumas variações e particularidades, no que respeita às suas formas; no Sul, eles são redondos, espessos e maciços, e comem-se no Domingo de Páscoa, ou em certos sítios, na Sexta-feira Santa, na Segunda-feira a seguir à Páscoa, ou mesmo, no final do Ciclo, em Domingo de Pascoela; nos arredores de Lisboa, eles têm uma forma ovalada; em Aveiro, a de um coração; etc. Em certas áreas do Alentejo, porém, como por exemplo na região de Elvas, os «folares» tomam aspectos zoomórficos, para os afilhados há os lagartos, borregos; para as raparigas, as pintainhas, pombas, bezerrinhas, borreguinhas. Em Castelo de Vide os namorados trocam entre si folares em forma de coração. E há os folares que simbolizam a fecundidade da mulher: o ninho, a galinha com os pintainhos em seu redor, a boneca grávida. O ovo está sempre presente – na boca do lagarto, no rabo da galinha, na barriga da boneca.

 

    O lagarto é símbolo do Sol e da Luz, aquele que busca o conhecimento, Deus, a outra vida.

 

    Ernesto Veiga de Oliveira refere-se ainda às regras determinadas em relação aos presentes cerimoniais da Páscoa, os «Folares». Assim, encontramos várias categorias de «Folares», com correspondência a situações sociais independentes,
tais como:

- Os presentes obrigatórios que os padrinhos dão na Páscoa aos seus afilhados;

- O óbulo que se oferece ao padre, em casa, quando da visita pascal, ou «compasso»;

- As ofertas determinadas que têm lugar na Páscoa entre pessoas ligadas por laços de parentesco genérico ou cerimonial.

 

    Pode dizer-se que as celebrações alimentares da Páscoa em Portugal representam a consagração do ovo «símbolo da fecundidade e abundância», nomeadamente no que se refere aos folares do Sul e Centro do País, onde surge incrustado inteiro, como elemento fundamental.

 

    Alguns historiadores sugerem também que muitos dos símbolos ligados à Páscoa, designadamente os ovos coloridos, bem como o coelhinho, são reminiscências da Festa da Primavera em honra de Eostre, a deusa da fertilidade, do Renascimento, da Ressureição, da Luz crescente da Primavera, na mitologia anglo-saxónica, cujo nome parece significar «Deusa da Aurora», festividades essas que foram assimiladas a Pessach.

    Pessach, (do hebraico, ou seja, passagem) também conhecida como Páscoa Judaica, associa-se, segundo o êxodo, à libertação do povo de Israel do Egipto.

 

    Regressando à Páscoa de origem germânica, referimos ainda que, em alemão, ainda hoje se designa a Páscoa por «Ostern» e em inglês «Easter».

Por essas filiações, há quem relacione a divindade Eostre com a Deusa grega Eos, também ela deusa do Amanhecer e ainda com a fenícia Astarte ou a babilónica Ishtar, pelas similitudes no que respeita aos rituais de fertilidade e às festividades do Equinócio da Primavera, sendo comum a Persas,
Romanos, Judeus e Arménios o hábito de trocar presentes de ovos coloridos.

 

    O Cristianismo acabou por absorver esta tradição através da Páscoa e, também por isso mesmo, o ovo aparece aqui ligado à ideia de renovação periódica da natureza. Remete assim ao mesmo mito da criação cíclica, mantendo-se a crença de que comer ovos no Domingo de Páscoa traz saúde e sorte durante todo o resto do ano, funcionando como algo de apotropaico contra as enfermidades.

 

            ... Votos de Páscoa Feliz, Saúde, Sorte e Alegre Renovação!

 

 

 

Fontes

BARATA, Filomena – Ludi Cereales – os ovos da Páscoa. In Portugal Romano – Revista de Arqueologia Romana. Abril, 2012

BARBOFF, Mouette – A Tradição do Pão em Portugal. Edição do Clube do Coleccionador dos Correios, 2011

OLIVEIRA, Ernesto Veiga de – Festividades Cíclicas em Portugal. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1984. 1ª ed.

Bola de Carne

Graellsia, 26.02.12
1º Desafio Culinário dos Blogs do SAPO
 
Há alguns anos atrás encontrei a receita de bola de carne, que acabaria por ser sempre a minha favorita. A massa fica leve, macia, aromática, e o conjunto das carnes, favorece-lhe o sabor.  
 
 
Ingredientes

600g de Farinha T55

7g de Sal

40g de Açúcar

30g de Levedura Fresca

1dl de Água

100g de Manteiga

4 Ovos

1 dl de Azeite

250g de Fiambre

200g de Toucinho fumado

200g de chourição

Ovo batido para pincelar

 

Preparação

Amassar a farinha, com o sal, o açúcar, a manteiga e os ovos. Adicionar o azeite.

Juntar a levedura dissolvida na água e amassar até a massa apresentar-se elástica, brilhante e com véu.

Tender em bola e deixar levedar.

Quando lêveda, transferir para a mesa de trabalho, e esticar em rectângulo com o rolo.

No centro do rectângulo colocar metade das carnes (fiambre, chourição, toucinho).

Em seguida, dobrar uma das extremidades sobre as carnes, de forma a cobri-las. Sobre essa porção de massa, colocar as restantes carnes.

Fechar com a outra parte.

Deixar levedar, novamente.

Picar a superfície da massa (com um garfo). Pincelar com ovo batido.

Coze a 200⁰C.

 

 
Fonte: SILVA, António (Direcção Técnica)- Bola de Carnes. Revista Teleculinária Gold. Pães, bolos e biscoitos. 30º Aniversário. Edições Plural, 2007