As salinas - um património a preservar
O marnoto antes de o ser, foi em primeiro lugar um agricultor, pois precisava de dominar as técnicas para amanhar e cultivar a terra. Precisava de conhecer a terra e as plantas que aí podia cultivar. Este conhecimento obtido pela experiência acumulada e transmitido de geração em geração constituiu o segredo que fez prosperar a nossa indústria salineira.
As salinas terão sido uma zona não só de exploração de sal, mas também de outros recursos alimentares, fornecendo aos que nelas trabalhavam os alimentos necessários para o dia-a-dia.
Entendendo as marinhas como um lugar de memória e identidade relacionadas com a alimentação, e que merecem ser preservadas, procurei junto do Núcleo Museológico do Sal, promovido pela Autarquia da Figueira da Foz, recolher testemunhos das vivências de outrora e do esforço desenvolvido para a preservação do património cultural salícola.
O Núcleo Museológico do Sal, da tipologia dos ecomuseus, não se limita ao espaço do edifício que recebe os objectos da exposição permanente, mas estende-se por todo o território da sua influência com um armazém do sal e com a rota das salinas de forma a despertar o interesse pelos múltiplos aspectos, desde os históricos, os etnográficos, os paisagísticos, os ambientais e os económicos. O edifício sede, para além da exibição das alfaias de trabalho, de quadros informativos, e da visualização de um filme, - possui um centro de documentação.
Integrada directamente ao Núcleo encontra-se a marinha do Corredor da Cobra, que apresenta um espaço vivo da actividade salineira, e uma mais valia, onde a água, o sal, a geometria dos talhos, o trabalho e o saber dos marnotos entram na exposição de forma directa, permanente e como complemento ao discurso expositivo, promovendo assim a participação da população.
Tive o privilégio de conversar com o marnoto que mantém a marinha do Corredor da Cobra viva e que salientou a capacidade daqueles que se dedicavam ao sal de rentabilizar os recursos alimentares existentes naquela viva extensão de salinas.
Segundo o seu testemunho, todas as porções de terreno que serviam para delimitar as salinas ou aquelas que ficavam no seu termo, eram utilizadas para a produção agrícola, desde o cultivo de trigo, do milho, de aveia, da cevada, de favas, de cenouras, de couves, de feijões, de batatas. Os terrenos, devido à concentração de sódio, eram potencialmente ricos para a produção hortícola, não necessitando de qualquer tipo de adubo o que desafiava a qualidade dos bens ali cultivados, pois eram em muito superiores do que os cultivados em terrenos agrícolas próprios.
Além da produção hortícola, aproveitavam o pescado existente no rio Mondego e nos braços de água do estuário – enguias, robalinhos, taínhas, barbos, lampreias; usufruindo, igualmente, da apanha de berbigão e de amêijoa. Durante os meses de Inverno, quando os trabalhos nas marinhas reduziam significativamente, os marnotos dedicavam-se à pesca de mar.
As refeições faziam-se na própria salina, onde os marnotos partilhavam os alimentos que levavam de casa transportados no cofinho. E, sentados em bancos de madeira, à roda da fanga de medir o sal para os navios e usada como mesa, partilhavam as batatas que a labuta diária da terra oferecia e que eram cozidas no momento. Partilhavam o pão ou a broa de milho que cada um cozia no forno de casa. O conduto era o peixe, geralmente bacalhau, carapau, fanecas ou sardinha. Depois da confecção, utilizavam a pá de trabalho como suporte à refeição, onde cada marnoto picava a batata no azeite e o peixe na cama da fatia de pão ou broa. O vinho era o acompanhante da refeição que descia lentamente da cabacinha, denominada ternamente pelo marnoto, a poupadeira.
Com base no testemunho do marnoto da Salina da Cobra podemos reflectir que aqueles que trabalhavam nas salinas valorizavam e aproveitavam os recursos naturais na sua totalidade, dedicando-se a arrancar da natureza e do seio das águas as diversas espécies comestíveis, bem como o sal.
A história social à volta das salinas, dos marnotos, os aspectos culturais do sal, a sua evolução na saúde pública e na alimentação, são aspectos que não podemos descurar de forma a valorizar e a preservar um património humano de inegável valor cultural e também paisagístico.
Com a impossibilidade do sal competir com os sistemas de conservação a frio, mais eficientes e elaborados, são necessárias novas vias para a sua valorização e estratégias de defesa patrimonial das salinas. O caminho a percorrer passa pela valorização e certificação do sal tradicional, bem como encontrar novas potencialidades, como as que se estão a desenvolver a partir do estudo de plantas halófitas, como a salicórnia e a acelga, para a alimentação humana.